ESPAÇO QUINCAS BORBA
Enseada de Botafogo: Até a primeira metade do século XIX, Botafogo era um local de chácaras e casas de campo. Em História das ruas do Rio, Brasil Gerson afirma que a mais antiga deve ter sido o palacete de Carlota Joaquina, construído onde hoje termina a Rua Marquês de Abrantes e demolido no século XX para dar lugar a apartamentos. O cenário muda entre 1870 e 1880, quando terrenos começam a ser loteados e a população local cresce, assim como os acessos: os poucos caminhos dão lugar a várias novas ruas. Esse avanço é estimulado pela chegada do bonde à região: os primeiros trilhos foram instalados ainda em 1868.
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Passagem:
RUBIÃO FILOSOFA NA JANELA DE CASA “RUBIÃO fitava a enseada, — eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista!”
Santa Teresa :O nome de Santa Teresa tem origem na história de duas irmãs de família ilustre que, no século XVIII, resolveram abraçar a vida religiosa. Elas se recolheram em uma chácara, ao fim da rua Matacavalos (atual Rua do Riachuelo), onde construíram, com pedras carregadas por elas mesmas, uma capelinha dedicada ao Menino Jesus. O trabalho chamou a atenção do Capitão-General Gomes Freire, que intercedeu por elas e mandou que levantassem um convento no morro adjacente, dedicado à Ordem das Teresinhas ou Carmelitas Descalças. Como em outros locais da cidade, a construção acabou influenciando o nome da região: o morro passou a se chamar Santa Teresa, e por extensão também o futuro bairro.
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Passagem: AS AMIZADES CARIOCAS “No dia seguinte, estava Rubião ansioso por ter ao pé de si o recente amigo da estrada de ferro, e determinou ir a Santa Teresa, à tarde; mas foi o próprio Palha que o procurou logo de manhã. Ia cumprimentá-lo, ver se estava bem ali, ou se preferia a casa dele, que ficava no alto. Rubião não aceitou a casa, mas aceitou o advogado, um contra-parente do Palha, que este lhe indicou, como um dos primeiros, apesar de muito moço.”
Rua Municipal (Rua Mayrink Veiga): Construída no início do século XIX onde antes havia uma horta e cerca do Mosteiro de São Bento, a antiga Rua Municipal chegou a abrigar o Instituto Imperial de Surdos-Mudos, fundado em 1856 por Dom Pedro II e em funcionamento até hoje na Rua das Laranjeiras. Em 1928, a via foi rebatizada como Mayrink Veiga, em homenagem ao negociante e presidente da Associação Comercial Alfredo Mayrink da Silva Veiga. O local é cenário do encontro entre Rubião e Freitas – um dos “amigos” por quem Rubião é cercado quando chega ao Rio, rico.
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Passagem: OS NOVOS AMIGOS “Rubião passou o resto da manhã alegremente. Era domingo; dois amigos vieram almoçar com ele, um rapaz de vinte e quatro anos, que roía as primeiras aparas dos bens da mãe, e um homem de quarenta e quatro ou quarenta e seis, que não tinha que roer. Carlos Maria chamava-se o primeiro, Freitas o segundo. Rubião gostava de ambos, mas diferentemente; não era só a idade que o ligava mais ao Freitas, era também a índole deste homem. Freitas elogiava tudo, saudava cada prato e cada vinho com uma frase particular, delicada, e saía de lá com as algibeiras cheias de charutos, provando assim que os preferia a quaisquer outros. Tinha-lhe sido apresentado em certo armazém da Rua Municipal, onde jantaram uma vez juntos.”
Rua da Alfândega: Em seus vários trechos, a Rua da Alfândega já teve uma série de nomes desde o século XVII, entre eles Caminho para o Engenho Pequeno dos Jesuítas (Engenho Velho, hoje Grande Tijuca), Caminho para São Cristóvão, Diogo de Brito, Rua do Governador e Quitanda do Marisco. A via começou a ganhar o nome atual do século XVIII para o XIX, quando o trecho até a Rua da Quitanda foi denominado “Travessa da Alfândega” por ficar de frente para o portão aduaneiro. Foi nela que se instalaram os primeiros comerciantes ingleses, chegados ao Brasil após a abertura dos portos em 1808. Não é à toa, portanto, que Palha estabelece por lá sua casa de importação, financiada inicialmente pela herança de Rubião.
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Passagem: O FINANCIADOR “É de saber que tinham decorrido oito meses desde o princípio do capítulo anterior, e muita coisa estava mudada. Rubião é sócio do marido de Sofia, em uma casa de importação, à Rua da Alfândega, sob a firma Palha e Companhia. Era o negócio que este ia propor-lhe, naquela noite, em que achou o Doutor Camacho na casa de Botafogo.”
Gamboa: Este trecho do romance mostra como os bairros da Saúde e da Gamboa, atualmente afastados do mar pela especulação imobiliária do Centro, faziam parte de uma referência de linha costeira do Rio de Janeiro. Esta região da cidade, onde hoje há uma tentativa de revitalização com as reformas do Porto, foi palco de acontecimentos importantes, como o desembarque e posterior contrabando de escravos no Cais do Valongo, o nascimento do samba e dos primeiros terreiros de religiões afro-brasileiras. O Saco do Alferes, conhecido também como Praia Formosa, ficava onde hoje é a Avenida Francisco Bicalho, com o mar entrando terra adentro.
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Passagem: UMA CAMINHADA PELA GAMBOA “Em verdade, era curioso. Aquelas grandes braçadas de mato, brotando do lodo, e postas ali ao pé da cara do Rubião, davam-lhe vontade de ir ter com elas. Tão perto da rua! Rubião nem sentia o sol. Esquecera o doente e a mãe do doente. Assim sim, — dizia ele consigo, — fosse o mar todo uma coisa daquele feitio, alastrado de terras e verduras, e valia a pena navegar. Para lá daquilo ficava a Praia dos Lázaros e a de São Cristóvão. Uma pernada apenas. — Praia Formosa, murmurou ele; bem posto nome. Entretanto, a praia ia mudando de aspecto. Dobrava para o Saco do Alferes, vinham as casas edificadas do lado do mar. De quando em quando, não eram casas, mas canoas, encalhadas no lodo, ou em terra, fundo para o ar. Ao pé de uma dessas canoas, viu meninos brincando, em camisa e descalços, em volta de um homem que estava de barriga para baixo. Todos eles riam; um ria mais que os outros porque não acabava de fixar o pé do homem no chão. Era um pequerrucho de três anos; agarrava-se-lhe à perna e ia-a estendendo até nivelá-la com o chão, mas o homem fazia um gesto e levava pelo ar o pé e o menino. Rubião deteve-se alguns minutos diante daquilo. O sujeito, vendo-se objeto de atenção, redobrou o esforço no brinco; perdeu a naturalidade. Os outros meninos mais idosos detiveram-se a olhar espantados. Mas Rubião não distinguia nada; via tudo confusamente. Foi ainda a pé durante largo tempo; passou o Saco do Alferes, passou a Gamboa, parou diante do Cemitério dos Ingleses, com os seus velhos sepulcros trepados pelo morro, e afinal chegou à Saúde. Viu ruas esguias, outras em ladeira, casas apinhadas ao longe e no alto dos morros, becos, muita casa antiga, algumas do tempo do rei, comidas, gretadas, estripadas, o caio encardido e a vida lá dentro. E tudo isso lhe dava uma sensação de nostalgia... Nostalgia do farrapo, da vida escassa, acalcanhada e sem vexame. Mas durou pouco; o feiticeiro que andava nele transformou tudo. Era tão bom não ser pobre!”
Rua da Harmonia: Antes de 1750 a rua era um simples caminho chamado Gamboa, que se dirigia à praia do mesmo nome (hoje desaparecida). Passou a ser conhecida depois como Rua do Cemitério, por ali haver um cemitério de escravos – a região era marcada por esse comércio. Em 1853 ganhou o nome de Rua da Harmonia, denominação usada no romance Quincas Borba. O nome atual, Rua Pedro Ernesto, só foi adotado no século XX.
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Passagem: OBSESSÃO POR SOFIA “— Não, não podia ser ela, refletiu Rubião, em casa, vestindo-se de preto. Desde que chegara, não pensou em outra coisa que não fosse o caso contado pelo cocheiro do tílburi. Tentou esquecê-lo, arranjando papéis, ou lendo, ou dando estalinhos com os dedos para ver pular o Quincas Borba; mas a visão perseguia-o. Dizia-lhe a razão que há muitas senhoras de boa figura, e nada provava que a da Rua da Harmonia fosse ela; mas o bom efeito era curto. Daí a pouco, desenhava-se ao longe, cabisbaixa, vagarosa, uma pessoa, que era nem mais nem menos a própria Sofia, e andava, e entrava de repente pela porta de uma casa, que se fechava logo...”
Rua da Princesa: A Rua da Princesa, ou Bela da Princesa, ganhou esse apelido no século XIX em homenagem a Carlota Joaquina. Somente no período republicano é que ela vem a se chamar Correia Dutra, nome que permanece até hoje. Ainda no Império, a rua teve dois moradores ilustres: o Visconde de Abaeté e Joaquim Nabuco. Em Quincas Borba, é lá que Rubião tem seu primeiro gesto de loucura: obcecado por Sofia, esposa de seu amigo, ele entra na carruagem da moça e age como se os dois fossem namorados.
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Passagem: O PRIMEIRO ATO DE LOUCURA “Desatinada, quis ordenar ao cocheiro que parasse; mas o receio de um possível escândalo fê-la deter-se a meio caminho. O coupé entrara na Rua Bela da Princesa. Sofia novamente pediu a Rubião que advertisse na inconveniência de irem assim, à vista de Deus e de todo mundo. Rubião respeitou o escrúpulo, e propôs que descessem as cortinas. — Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicou Rubião; mas, fechando as cortinas, ninguém nos vê. Se quer?”
Praça XV (Largo do Paço): A Capela Real, mais tarde Capela Imperial, é na verdade a Igreja de Nossa Senhora do Carmo. A estrutura original do templo é a de uma capelinha originalmente destinada a Nossa Senhora do Ó, e construída em 1590. No século XVIII, a Ordem Carmelita realizou inúmeras obras e o transformou na Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Depois da vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, a proximidade da igreja com o Paço, onde d. João VI despachava, e com o vizinho Convento do Carmo, onde a louca rainha dona Maria I foi morar, transformaram o Carmo na Capela Real. Com a sagração de dom Pedro I como imperador, ela passou a ser a Capela Imperial e Catedral do Rio de Janeiro, por isso é chamada de Antiga Sé.
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Passagem: A MORTE DA AVÓ “- Para entenderes bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como morreu minha avó. — Como foi? — Senta-te. Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto Quincas Borba continuava a andar, recolhendo as ideias. — Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à cadeirinha, que a esperava no Largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da Rua Direita, veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o ombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois.”
Largo do Moura: Este roteiro percorrido por Rubião traz um circuito muito importante para o século XIX, com a importância das ruas do Ouvidor e do Ourives (mais tarde desmembrada com os nomes de Rodrigo Silva e Miguel Couto) e da área do Largo de São Francisco e da Rua do Cano (hoje Sete de Setembro) mais próxima ao cais. Esta é uma região do Centro muito estratégica para a obra e até mesmo a vida de Machado. Mas neste trecho de “Quincas Borba” Rubião também presencia uma execução nas proximidades do Largo do Moura, que ficava entre o Museu Histórico Nacional e o Morro do Castelo. Era lá onde ficava o Regimento de Infantaria antiga forca – e onde, em 1789, foi assassinado o alferes Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes). Em 1794, o Largo ganhou um lindo chafariz, retratado por Thomas Ender em gravuras e pinturas, e mais tarde demolido. Rubião vê a multidão se acumular para assistir à execução e o narrador informa aos leitores que o réu cometeu um crime brutal no bairro de Mata-Porcos, antigo nome do Estácio. A escolha literária de Machado para um cenário de crime que se chama Mata-Porcos não parece aleatória, aliás. O assassino é “um preto”, o que mostra uma clara divisão entre a elite com nome e os vários anônimos pobres.
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Passagem: UMA EXECUÇÃO EM PLENA RUA “Lá iam longos anos. Ele era então muito rapaz, e pobre. Um dia, às oito horas da manhã, saiu de casa, que era na Rua do Cano, entrou no Largo de São Francisco de Paula; dali desceu pela Rua do Ouvidor. Ia com alguns cuidados; morava em casa de um amigo, que começava a tratá-lo como hóspede de três dias, e ele já o era de quatro semanas. Dizem que os de três dias cheiram mal; muito antes disso cheiram mal os defuntos, ao menos nestes climas quentes... Certo é que o nosso Rubião, singelo como um bom mineiro, mas desconfiado como um paulista, ia cheio de cuidados, pensando em retirar-se quanto antes. Pode crer-se que desde que saiu de casa, entrou no Largo de São Francisco, e desceu a Rua do Ouvidor até à dos Ourives, não viu nem ouviu coisa nenhuma. Na esquina da Rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas, e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Mas, as principais figuras eram dois pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública. Lido o papel, o préstito seguiu pela Rua dos Ourives adiante; vinha do aljube e ia para o Largo do Moura. Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos esteve como agora à escolha de um tílburi. Forças íntimas ofereciam-lhe o seu cavalo, umas que voltasse para trás ou descesse para ir aos seus negócios, — outras que fosse ver enforcar o preto. Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em vinte minutos está tudo findo! — Senhor, vamos tratar de outras coisas! E o nosso homem fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso. O acaso, em vez de levá-lo pela Rua do Ouvidor abaixo até à da Quitanda, torceu-lhe o caminho pela dos Ourives, atrás do préstito. Não iria ver a execução, pensou ele; era só a marcha do réu, a cara do carrasco, as cerimônias... Não queria ver a execução. De quando em quando, parava tudo, chegava gente às portas e janelas, o oficial de justiça relia a sentença. Depois, o préstito continuava a andar com a mesma solenidade. Os curiosos iam narrando o crime, — um assassinato em Mata-Porcos. O assassino era dado como homem frio e feroz. A notícia dessas qualidades fez bem a Rubião; deu-lhe força para encarar o réu, sem delíquios de piedade. Não era já a cara do crime; o terror dissimulava a perversidade. Sem reparar, deu consigo no largo da execução. Já ali havia bastante gente. Com a que vinha formou-se multidão compacta. — Voltemos, disse ele consigo.”
Largo da Ajuda: O Largo da Ajuda era precisamente localizado na esquina das ruas dos Barbonos e da Guarda Velha (atuais Evaristo da Veiga e 13 de Maio). No trecho, Rubião menciona também o Convento da Ajuda, O mosteiro feminino foi demolido em 1911, e em seu lugar foi erguido um parque de diversões administrado por Francisco Serrador, pioneiro do entretenimento no Rio de Janeiro. Depois do parque, foi construído ali o Edifício Odeon, um dos primeiros arranha-céus da cidade. O parque foi a ponta de lança para uma série de cinemas instalados na região, dando origem à Cinelândia nos arredores do Largo, hoje Praça Floriano. Embora o convento não exista mais, o Chafariz das Saracuras (1795), atribuído ao Mestre Valentim, que ficava no pátio interno do claustro, até hoje pode ser visto na cidade: está na Praça General Osorio, em Ipanema. O Convento promoveu a construção de uma Escola, a São José, que não foi destruída: é onde hoje funciona o Palácio Pedro Ernesto, Câmara de Vereadores do Rio.
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Passagem: CONVENTO DA AJUDA “- É preciso pô-lo fora daqui, pensou a moça. E, aparelhando-se de coragem: —Onde estaremos nós? perguntou-lhe. É ocasião de separar-nos. Veja do lado de lá: onde estamos? Parece que é o convento; estamos no Largo da Ajuda. Diga ao cocheiro que pare; ou, se quer, pode apear-se no Largo da Carioca. Meu marido... — Vou nomeá-lo embaixador, disse Rubião. Ou senador, se quiser. Senador é melhor; ficam os dois aqui. Embaixador que fosse, não consentiria que tu o acompanhasses, e as más línguas... Tu sabes a oposição que sofro, as calúnias... Ah! ruim gente! Convento da Ajuda, disseste? Que tens tu com ele? Queres ser freira?”